Entrevista com Ana Luísa Guimarães Galvão

Entrevista realizada por Fabíola Trucci, Érica Sabino e Priscila Chiste para o quinto volume dos Recursos Educativos em Arte, parte do Projeto Educarte, sobre a exposição Pinturas apresentada no Espaço Cultural Egydio Antônio Coser, do Centro do Comércio do Café de Vitória, de 11/09 a 10/10/2003.


Chegando à casa de Ana Luísa a sensação que se tem é de imersão em um ambiente de tranqüilidade, com um leve perfume no ar e ao som de música instrumental. Em cada ambiente pode-se ver uma pintura, um objeto que faz parte de sua trajetória. Ana é uma pessoa delicada e que demonstra um grande equilíbrio pessoal. Quando fala, nos envolve, proporcionando uma sensação de conforto por estar em sua companhia. Começamos essa entrevista em seu atelier, um ambiente organizado, repleto de quadros que nos desviam o olhar mesmo sem querer: um convite a entrar no seu mundo de cores.

Ana Luísa, onde você nasceu?

Eu nasci na cidade de São Roque, interior de SP. É uma cidade fria, na serra. De vez em quando eu volto lá e é muito gostoso porque a região onde a gente passa a infância, marca muito a sensibilidade da gente. na última vez que nós estivemos lá, entramos na catedral e fiquei olhando aquelas pinturas... e eu lembrei do olhar que eu tinha, quando era criança. Eu fiz o pré-primário no colégio das freiras. Foram experiências muito ricas sensorialmente porque era tudo muito instigante: os ladrilhos, as cores, o jardim interno com roseiras, com fonte, aqueles cheiros de cera e do próprio jardim. Tudo muito bonito. Aquelas pinturas simbólicas do pão, da pomba... Aquele frio... eu me lembro de ir para escola e não enxergar dois metros à frente porque era tudo neblina. Tudo isso, certamente, me marcou muito. E, é claro, minhas primeiras experiências de cor... me recordo de um momento, eu devia ter quatro anos, em que estava andando pra chegar no jardim de infância. E era mato, arbusto, tudo... a sensação que eu tinha era de estar andando dentro do verde, como se fosse um corredor verde, tudo verde. E, no alambrado da escola, eu vi um casulo, fui pegá-lo e ele se desmanchou na minha mão, revelando um azul surpreendente... Ao fim do verde, dentro do verde, um azul inesquecível.

Os brinquedos eram muito coloridos, a gangorra, o balanço. Talvez tivesse chovido, eu não sei. Eram vermelhos, eram verdes, amarelos. Me recordo também de uma flor, de que só agora descobri o nome, espatódia, que tem tons de alaranjado, vermelho e uma forma curiosa, me fazia pensar em algum tipo de animal. Essas experiências de cor e do olhar na infância, ficaram inteiras na minha mente.

- Você estudou onde?

Eu estudei na FAAP, em São Paulo. Você poder ter aula com artistas muito atuantes e bastante importantes como eu tive naquela época, era uma coisa vital, você sentia que estava dentro de uma estrutura viva. Discutiam-se os trabalhos... Lá a gente tinha a sensação, a vivência mesmo, de estar imerso no mundo da arte... as oficinas eram enormes, você tinha as melhores condições de trabalhar. Os debates...os professores pensavam coisas muito diferentes...e debatiam, um criticava muito o outro e a gente tinha que tomar posição e analisar as coisas. Eu passava muitas horas na biblioteca, que era fantástica... me lembro das tardes que eu passava lá vendo os livros de arte. O que eu considero básico para a formação de um artista é ver. Ver tudo que os outros artistas fizeram, ver muito aqueles que você gosta mais. Então, todos os artistas eu fui descobrindo ali. Outra coisa, eu percebia claramente nas aulas que os professores queriam moldar a gente naquilo que eles consideravam a verdade, o que é complicado, pois muitas vezes eles atropelavam a sensibilidade dos estudantes. Eu percebia quais eram as tendências “de moda”, que a minha sensibilidade não se encaixava com algumas delas e que se eu fosse depender daquilo para ser aceita, nos salões, em galerias, isso não iria acontecer. Eu até tentava, mas não conseguia fazer de outro jeito. Então o período de estudos na FAAP foi muito rico pelo convívio com os professores-artistas, pelas idas nas galerias para ver o que eles estavam produzindo, e eles participavam de bienais com os trabalhos deles, a gente ia, criticava... Estar em São Paulo também foi muito bom, ir ao MASP, ver os vídeos dos artistas falando sobre seu trabalho, isso eu também considero da maior importância, porque quando eu comecei a estudar...nossa! Eu levava tudo tão a sério, estudava muito... aí eu comecei a perceber uma diferença muito grande entre o que os artistas falavam e o que certos teóricos falavam. Às vezes, certos textos teóricos afastavam a gente daquela realidade. E quando eu descobri nas exposições, nos vídeos, os artistas no seu atelier, trabalhando e falando sobre aquilo, eu vi a vida da arte ali. Com isso eu aprendi muito. Aprendi qual é o espírito, como você faz, como você resolve as questões que aparecem. Aquilo pra mim foi o maior aprendizado. Assim como conviver com artistas, ir lá no atelier, ver ele trabalhando... eu vi como a coisa é na prática.

- E quem eram os seus professores?

Evandro Carlos Jardim, que tem um trabalho de gravura em metal, uma pessoa muito sensível e muito séria...prestava atenção nas minúcias da técnica. Ele me ensinou muito pela sua postura de respeito às pessoas, aos alunos ... e ele vivia rodeado de alunos! Tive aulas também com Nelson Leirner. As aulas dele eram cheias de alta ansiedade, porque ele provocava você, te colocava contra a parede, criava situações- limite e acreditava nisso. E isso foi muito legal porque ele despertou na gente uma postura de brigar com ele e de acostumar a receber certas críticas mais contundentes e parar para pensar e resolver de alguma forma. Ele tirou um pouco daquela coisa do aluno ficar com uma sensação filial em relação ao professor mostrando assim, que o professor é um colega de trabalho, na profissão. Na verdade ele queria tirar a gente daquele raciocínio muito quadradinho, muito linear, jogando a gente nos imprevistos. Donato Ferrari também foi importante. Fui monitora dele na disciplina de plástica por três semestres e assim aprendi muito de cor. Eu descobri as variantes de cor e me dediquei muito, a pesquisa da cor começou ali. Tive professores muito interessantes como a Regina Silveira de gravura, o Vlavianos de escultura, o Mário Ishikawa, e o Tomochigue Kusuno de desenho. Ele, por exemplo, não tinha muito discurso. Um dia eu estava fazendo um desenho de figura humana com pincel, aí ele chegou e desenhou o fundo primeiro e a figura apareceu. São coisas que o professor faz e que nos despertam, abrem a nossa percepção e pronto! Nem precisa falar mais nada. Naquele minuto, eu já saí com a minha percepção modificada para a prática. Tive aulas de Sumi-ê, que foi com Massao Okinaka, um professor japonês que também falava pouco português... nessas aulas eu aprendi muito a técnica do pincel. E outras experiências além da FAAP.

- Dentro do mundo artístico, sempre existiram alguns modismos... mas, mesmo assim você descobriu um estilo de pintura seu. Como você caracterizaria os seus trabalhos?

Eu comecei a perceber que eu tendia mais para formas fechadas, que eu gostava da forma simples, tinha gosto pela síntese. E fui descobrindo isso aos poucos... o valor que eu dou para a visualidade, não como uma coisa vazia, mas fui vendo a importância da presença visual o trabalho. Eu sinto que o trabalho tem que ter força visual. Então, certos trabalhos mais “literários” que eu tentei fazer saíram horríveis porque eu não sinto dessa forma e para mim eles não têm valor pela falta dessa força visual. Eu não sei se ficou claro o que eu quis dizer com força visual...

-Força visual seriam as cores contrastantes...

A força visual é a cor quando a questão é a cor, é a forma quando a questão é a forma. Para mim o trabalho tem que se resolver para o olhar. A força dele existe para o olhar. E é isso o que eu considero como valor. É uma coisa difícil de explicar porque ela é sensorial. Então quando o trabalho fica muito narrativo ele vai perdendo essa força E eu não conseguia fazer isso... e isso era e ainda é um tipo de moda, cada vez mais...Então eu fiquei afastada de muitos espaços. A força visual é uma conquista do modernismo, libertar a arte do compromisso de ilustrar idéias verbais é uma grande conquista. É o pensamento visual que não segue a lógica verbal, discursiva, de forma alguma. É uma outra área de conhecimento, o conhecimento que envolve a sensibilidade visual, mas ele não se traduz em palavras, ele não traduz palavras, ele é independente disso. Na verdade eu fui chegando a essas conclusões porque eu tentava de tudo, eu experimentava muito. Quando eu experimentava fazer trabalhos com muitos elementos o resultado não me agradava nunca.Quando eu via trabalhos dos artistas mais velhos, trabalhos mais sintéticos assim como os de Arcângelo Ianelli ou de Tomie Othake, percebia que aquilo me agradava e isso me orientou muito. Eu fui saindo da questão do mental passando para o sensível. Olhar essas pinturas e perceber que elas tinham uma repercussão em mim foi a referência. Eu falei para mim: “Esse é o caminho que eu quero seguir.”

-Ana, fala um pouquinho das suas exposições anteriores, as que você considera as principais.

Eu demorei muito para fazer uma exposição individual, eu não tinha pressa com relação a isso. Eu queria estar pronta, chegar em alguma coisa para então fazer a primeira individual. E sempre procurando...talvez tivesse aquela ilusão de buscar um estilo único, e é impossível porque eu tenho muita curiosidade, muitos interesses e eu teria que me forçar a fazer uma coisa só. o que jamais conseguiria. Isso é até uma experiência interessante para passar para os estudantes: não façam isso! É bobagem! (risos). Eu deveria ter exposto logo no começo. Fui percebendo que pronta, pronta como eu achava que um dia estaria, eu jamais estaria. A primeira individual aconteceu quando eu já estava em Vitória dando aula na Ufes. Eu participei de salões, coletivas que foram muito interessantes. Logo que eu cheguei. expus telas grandes no Espaço Universitário, e apreciei muito, pois eu senti um retorno do público. A cor em uma dimensão maior parecia chegar à sensibilidade de pessoas que, mesmo sem uma formação intelectual na área, vinham manifestar opiniões muito pertinentes e eu achava aquilo muito prazeroso.

Com relação às individuais, fiz algumas experiências figurativas....Foi na época em que eu estava fazendo um trabalho de análise junguiana, observando muito os meus sonhos, escrevi contos de fadas, fui morar em frente da praia em uma fase pessoal muito feliz. Mas eu brigo muito com a pintura. Isso já aconteceu várias vezes em minha trajetória. Eu estava achando que meus trabalhos estavam muito intelectuais e eu queria uma coisa simples. Uma simplicidade parecida com a simplicidade com que a criança, sem ficar pensando se está bom ou não, ela simplesmente faz sua imagem. Procura fazer o melhor possível. E eu quis entrar nesse espírito e fui buscar uma coisa talvez até estereotipada, pintar um barquinho, com o sol...então peguei o pincel e pus na tinta espessa, não diluída, e fiz o contorno com tinta grossa. Aí eu comecei a perceber um potencial que na época estava me interessando muito, que era o potencial de trabalhar com imagens ...vamos chamar assim, arquetípicas. Aquilo me fascinou. Aí eu produzi uma série de pinturas, a árvore, a roseira, o mar, o barco... e fiquei fascinada de trabalhar dessa forma, com esse aspecto de profundidades psicológicas, inconsciente coletivo. As pessoas ficaram imantadas por esse tipo de imagens. Foi muito legal, mas teve seu tempo, eu fiquei muito satisfeita com aquela pesquisa e já comecei a me interessar por outras coisas. Foi quando eu parti para o trabalho “Horizontes Urbanos”. São vinte telas...Um olhar sobre a cidade porque eu tinha me afastado de viver na cidade, fui morar em Jacaraípe e depois voltei e revi a cidade e seus ritmos e tive um outro olhar. Aí, daquelas figuras eu passei para outras, já não eram mais contornadas, eu já queria uma coisa de massa, quase silhueta...e as cores já ficaram mais fortes, mais puras, porque no trabalho anterior elas estavam mais claras. A partir daí eu fechei esse conjunto de trabalhos que foi "Horizontes Urbanos" e senti sede de abstração. Então, foi muito revigorante, e isso é uma coisa que eu sempre passo para as pessoas que me pedem orientação, eu acho muito vitalizante você trabalhar um tempo com figura, um tempo com abstração, porque elas exigem coisas diferentes. Eu gosto de passar um tempo sem mexer com aquilo e depois voltar. Você olha com um outro olhar. Então, a questão da figura e da abstração não é algo que eu tenha que escolher. Quase que eu coloquei nessa exposição algumas figuras, mas eu estou sem tempo físico para atelier para encarar isso. Eu teria que estar com mais horas para fazer essas experiências todas e juntar, fazer um conjunto, uma coisa coerente. Mas, a qualquer momento eu posso aparecer com figuras no meu trabalho, já estou até com umas idéias, mas elas não fluíram ainda. Eu não vejo...eu não tenho que escolher entre um e outro. Conforme o pensamento, a pesquisa, conforme o sentimento, a idéia, ela vem em forma de figura. Por exemplo, eu estou com essas telas compridas aí, e William (Golino, professor de Teoria da Arte da UFES) me perguntou se eu ia pintar, aí eu disse "Eu não estou ainda com nenhuma idéia comprida". Nem vertical, nem horizontal, sabe? Eu olho para elas e elas não me dizem nada. E olha que eu já pintei muitas telas alongadas. Não há muito controle sobre isso, é uma síntese de uma série de interesses, de sentimentos, de percepções, de idéias. E o que eu gosto na arte é essa complexidade. Não dá para tornar menos complexa, então parece que tem uma hora que a gente faz uma síntese de tudo isso que está sendo vivido e aí requer um certo tipo de formato, uma certa gama de cores, requer que seja abstrato ou figura. E não é só seu lado racional que vai escolher, isso torna o trabalho pobre e chato para você e para quem for olhar. Na verdade é a síntese que você vai fazer que determina se vai ter cor ou não, se vai ser aguado ou espesso. Você só vai sentindo se está indo de encontro ao alvo ou não. Quando eu estava fazendo esse quadro ali, por exemplo, o verde e rosa, eu tive que viajar. E ele teve tanto impacto sobre mim, que eu me lembrava dele lá e eu me sentia feliz. Era como se eu ficasse olhando ele de lá. Porque eu não tive muito tempo de parar e ficar olhando para ele...O olhar é uma parte importante do meu trabalho no atelier. E eu me lembrava que ele estava aqui e me sentia feliz, eu me senti feliz quando ele aconteceu, e não foi tão previsto.

Dos trabalhos para essa exposição, aquele amarelo que está lá no alto, que são dois amarelos e a faixa branca, foi o primeiro. Parece que nele eu consegui aquilo que eu falei da síntese, então tudo que eu estava querendo trabalhar em forma de pintura eu consegui marcar como referência. Na hora em que eu pintei, eu falei: "É isso que eu quero agora!". E se alguém me perguntasse : "E isso é o quê?" Aí eu teria que parar para traduzir em palavras. Nesse trabalho eu me permiti chegar numa simplicidade, comparado com outros, maior. E isso me agradou imensamente. Todos esses trabalhos tem três cores, se eu coloco uma quarta cor, me incomoda, fica excessivo, porque a questão do momento é síntese, é simplicidade.

Para essa exposição eu pensei em escrever algumas palavras, pensando no que poderia ajudar as pessoas a entrar no mesmo clima que eu, então se eu pudesse dizer algumas palavras... simplicidade, silêncio e cor.

A minha prática de atelier, as horas de olhar são básicas, eu não pinto sem isso. Não faça esquema vou lá e pinto, não existe isso. Esse tempo de olhar é de sentir de como está se dando essa química. E de tentar prever se eu entrar com um vermelho ali como é que vai ser. Aí entra a minha experiência que de tanto colocar as cores uma do lado das outras, você vai formando seu banco de dados sensível. Mesmo assim você não consegue prever totalmente, a memória de cor é muito efêmera.

- Como que é seu processo de criação, de elaboração das suas telas?

Bom, tem uma fase inicial que você não sabe o que você vai fazer. Em termos de processo de criação existem muitos livros que falam sobre isso, aprendi muito com eles a não brigar com o processo, pois tem suas várias fases e para cada artista é de um jeito. Para mim, eu fico um tempo pensando, eu preciso fazer meus esboços, pois aquilo me ajuda a imaginar. Eu gosto muito de fazer esses esboços, mas, é apenas para eu ancorar uma sensação, para não perder a idéia. Essa é uma primeira fase. Depois encomendo minha tela no formato e na espessura que eu quero. Com a tela já pronta para trabalhar, eu começo de uma forma muito simples, colocando cores, eu não desenho antes na tela. Quando eu trabalho com a forma reta, do que às vezes eu sinto falta, aí eu uso máscara de fita adesiva, essas coisas. Nessa exposição eu não usei porque eu estava querendo algo mais macio, mais solto. Eu tentei fazer algumas em que eu coloria a tela inteira primeiro, para entrar com as formas depois, eu não gostei muito dessa forma de trabalhar. Eu gostei mais quando eu já fui com uma idéia clara do que eu queria. Eu já vou querendo alguma coisa: vai ser um retângulo dessa cor, o fundo vai ser daquela e a outra forma daquela outra cor...Depois as coisas podem mudar, ou não. Seria um acorde de cores que tem aquele clima, aquela atmosfera de que eu falei, enquanto eu não sinto isso eu não sinto energia de pintar, eu tenho preguiça de pegar na tela para passar tinta nela. Quando vem um acorde de cores que eu considero que vai ficar envolvente, bonito, suave, gostoso, forte ou alguma outra sensação, aí eu não vejo a hora de pegar a tela e colocar as tintas, porque eu quero ver aquilo. O processo eu deixo muito aberto para descobrir outras coisas, às vezes eu vou com um acorde e vejo uma possibilidade de mudar e mudo mesmo. Mas, o principal do meu processo é isso: enquanto não vêm as cores certas, eu não tenho a menor energia para pintar. Às vezes começa com uma cor, fico com uma obsessão de uma cor, um rosa, por exemplo, aí depois fico pensando: "O que vai vir com esse rosa?" Aí eu quero contrastes, ou não, quero cores bem parecidas, uma vibração suave... São sensações. Eu li uma vez Matisse falando: " Meu quadro começa com uma sensação." Pelo menos eu estou bem acompanhada e eu acho que os coloristas (considero coloristas os pintores acima de tudo apaixonados pela cor) são todos assim. A sensação pode ser de contraste forte, de calor, de pulsação... E existem cores certas para essas sensações. As vezes eu fico tentando achar essas cores certas. Uma vez encontrada, a felicidade é completa. Eu vou para o quadro naquela busca de ver aquela sensação concretizada. É tão empolgante para mim, mas eu não fico pensando "Vou levar ao espectador essa sensação". É uma coisa de compartilhar. Eu fico imaginando se a pessoa vai sentir daquele jeito... Que legal que vai ser. É como se eu falasse: "Olha que cores bonitas ou tranqüilas que eu encontrei aqui, olha que cores quentes ou como elas ficam bem juntas." É um convite mesmo, a uma sensação que eu considero rica. Um convite à contemplação, a entrar em silêncio mental para o olho ficar cada vez mais atento, impregnado das cores... E é isso, o que me apaixona na arte: a complexidade.

E agora falando de sensação, a pessoa pode pensar numa coisa bem epidérmica. Mas na verdade essa sensação está ligada ao fato que meus quadros tem também uma proposta meditativa, porque isso faz parte do meu mundo, eu gosto de fazer meditação, considero o silêncio muito importante. Estar no mundo com atenção leva a uma outra percepção da realidade, olhar uma cor e tornar-se “igual” a ela, ver a vida a partir dela...é descobrir mais uma faceta da existência. E quando você, como pintor, leva alguém a esse determinado “posto de observação” esse alguém sofre transformações no seu ser e agir no mundo de uma maneira não previsível, porque você não traz um discurso pronto, uma visão de mundo a ser seguida, copiada, você traz uma oportunidade de enriquecer o olhar, a vida.

- Além disso existem alguns artistas que influenciaram seu trabalho?

Com relação às influências de outros artistas sobre o meu trabalho eu vejo duas fases, primeiro o tempo de estudante em que eu buscava aprender com os artistas que estudava na história da arte. Foi uma fase de grandes paixões, eu passava períodos inteiros totalmente envolvida com o trabalho de um determinado artista até me envolver com outro e assim por diante. Leonardo da Vinci, Rembrandt, Cézanne, Matisse, Kandinsky são apenas alguns nomes. Depois disso eu entrei na busca do meu caminho e aprendi muito experimentando o processo nomeado por Kandinsky de improvisação. Considero os estudos a esse respeito como a base do meu trabalho de abstração. Esse processo levou-me diretamente ao expressionismo abstrato do qual era uma das origens. Uma exposição de Karel Apel no Masp em que pude ver o vídeo mostrando seu ateliê e método de trabalho foi uma experiência marcante que me levou a pensar na liberdade necessária ao bom trabalho de arte. Acompanhar de perto a montagem da 16ª bienal de São Paulo com curadoria de Walter Zanine, então nosso professor de história da arte, fazendo parte do grupo de apoio do artista francês Hervée Fischer que apresentou intervenções na cidade foi uma experiência muito rica. No caminho de eleição da pintura como o meu meio de criação principal comecei a perceber que os trabalhos que mais atraíam meu olhar eram os que podemos nomear como trabalhos de campos de cor. Foi um período em que descobri Ianelli e Tomie Ohtake. Depois veio a descoberta de Rothko. A primeira vez que vi uma reprodução de uma de suas pinturas de campos de cor (porque ele tem outros tipos de pintura também) senti forte impacto, como se estivesse vendo o meu sonho de pintura tornado mais concreto, mais palpável. Era como uma bússola apontando o caminho. O trabalho abstrato de Volpi também me marcou muito por sua força. Uma única reprodução já é o bastante para influenciar profundamente quando existe a ressonância da afinidade. Hoje tenho grande admiração e aprendo com o trabalho de Paulo Pasta e Eduardo Sued que são artistas contemporâneos que estão no mesmo caminho.

Com relação à questão da influência em si eu considero que a gente descobre muito sobre si mesmo quando se abre para o trabalho de outros artistas e naturalmente dá continuidade a uma construção histórica, o que é da maior importância. A pintura é um campo de conhecimento criado por inúmeras gerações de pintores, teóricos e apreciadores e entrar nesse campo aprendendo com os que vieram antes e buscando dar nossa contribuição é o que dá o sentido maior do trabalho.

- Você falou do Rothko e eu me lembrei de uma coisa: o gesto dele era suave, você tem isso no momento em que está pintando ou o seu gesto é mais dinâmico?

O que eu aprendi muito no Sumi-e... Porque a gente tinha umas idéias equivocadas na época da FAAP. Que o artista precisava estar num estado de semi-loucura, mas com o Sumi-e eu aprendi uma certa disciplina sensível. Você tinha que prender a respiração e acompanhar o traço do pincel, porque senão dava errado e não tinha como consertar. Aquilo me despertou para a riqueza do universo, de você estar muito sereno, atento e centrado. É o estado em que eu entro quando estou pintando, por isso que eu falo que é parecido com a meditação, porque é um estado de centramento, de atenção. Eu só vou para o momento de aplicar a tinta sobre a tela, quando eu estou muito serena, atenta, calma. Então, é um gesto de consciência. Eu estou muito consciente de cada coisa que está acontecendo, de cada pincelada que está compondo aquele todo. Não tem aquela coisa do "frenesi". Eu compreendi isso com artistas que têm essa vivência com a meditação, eles conseguem aquela atenção intensa sem precisar usar artifícios, substâncias. Por que o ocidental para eliminar o ruído cotidiano, acha que precisa utilizar esses artifícios, ou então, se motivar a ficar tomado de fortes emoções para conseguir calar um pouco a mente. Então, ele vai para o quadro feito um louco pintar, mas eu prefiro ir um pouco por outro caminho com que eu tenho mais afinidade que é justamente o caminho da concentração. Eu fico olhando infinitamente os quadros que estão prontos, sou capaz de ficar olhando meses. Os quadros que eu faço são ricos para mim. Eu procuro nas sutis tensões do quadro criar justamente essa riqueza. Quando eu sinto vontade de parar de olhar e pegar no pincel é por que eu já entrei num estado de concentração profundo para esse trabalho que eu vou fazer. Se você não entra nesse estado o trabalho fica superficial, você não conquista nada com ele.

Você já criou alguma coisa a partir de um texto, música ou poesia?

Eu não faço isso. As sínteses se dão. Eu amo ler poesias, eu escrevo poesias, eu ouço músicas com intensidade e com certeza elas estão presentes naquilo que eu faço. Mas se eu me propuser a fazer a partir daquilo, eu já fico com uma má vontade tremenda, porque eu sinto que é superficial. Teve uma pintura que eu fiz, numa exposição anterior, no Palácio do Café, uma marinha. Ela ficou tão azul... Quando eu terminei, eu olhei e me lembrei de um poema que li infinitas vezes, de um poeta americano, Wallace Stevens. Depois que eu fiz o quadro percebi que eu tinha pintado o poema. O poema entrou tanto dentro de mim, eu introjetei tanto, eu amei tanto aquele poema que, no momento em que eu estava pintando, ele estava ali presente, e eu dei o título ao quadro: "Marinha para Wallace Stevens". Todas essas coisas compõem a minha consciência. Procuro ler outros assuntos também, assuntos que me interessam. Eu sinto que a partir daí, eu vou fazendo sínteses de percepções que eu tenho. Aí, eu produzo uma série de pinturas depois que elaborei compreensões das coisas que vejo, assim eu tenho condições de elaborar coisas novas. Esse é meu processo de criação.