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Entrevista com Ana Luísa Guimarães Galvão
Entrevista realizada por Fabíola Trucci, Érica Sabino
e Priscila Chiste para o quinto volume dos Recursos Educativos em
Arte, parte do Projeto Educarte, sobre a exposição
Pinturas apresentada no Espaço Cultural Egydio Antônio
Coser, do Centro do Comércio do Café de Vitória,
de 11/09 a 10/10/2003.
Chegando à casa de Ana Luísa a sensação
que se tem é de imersão em um ambiente de tranqüilidade,
com um leve perfume no ar e ao som de música instrumental.
Em cada ambiente pode-se ver uma pintura, um objeto que faz parte
de sua trajetória. Ana é uma pessoa delicada e que
demonstra um grande equilíbrio pessoal. Quando fala, nos
envolve, proporcionando uma sensação de conforto por
estar em sua companhia. Começamos essa entrevista em seu
atelier, um ambiente organizado, repleto de quadros que nos desviam
o olhar mesmo sem querer: um convite a entrar no seu mundo de cores.
Ana
Luísa, onde você nasceu?
Eu nasci na cidade de São Roque, interior de SP. É
uma cidade fria, na serra. De vez em quando eu volto lá e
é muito gostoso porque a região onde a gente passa
a infância, marca muito a sensibilidade da gente. na última
vez que nós estivemos lá, entramos na catedral e fiquei
olhando aquelas pinturas... e eu lembrei do olhar que eu tinha,
quando era criança. Eu fiz o pré-primário no
colégio das freiras. Foram experiências muito ricas
sensorialmente porque era tudo muito instigante: os ladrilhos, as
cores, o jardim interno com roseiras, com fonte, aqueles cheiros
de cera e do próprio jardim. Tudo muito bonito. Aquelas pinturas
simbólicas do pão, da pomba... Aquele frio... eu me
lembro de ir para escola e não enxergar dois metros à
frente porque era tudo neblina. Tudo isso, certamente, me marcou
muito. E, é claro, minhas primeiras experiências de
cor... me recordo de um momento, eu devia ter quatro anos, em que
estava andando pra chegar no jardim de infância. E era mato,
arbusto, tudo... a sensação que eu tinha era de estar
andando dentro do verde, como se fosse um corredor verde, tudo verde.
E, no alambrado da escola, eu vi um casulo, fui pegá-lo e
ele se desmanchou na minha mão, revelando um azul surpreendente...
Ao fim do verde, dentro do verde, um azul inesquecível.
Os brinquedos eram muito coloridos, a gangorra, o balanço.
Talvez tivesse chovido, eu não sei. Eram vermelhos, eram
verdes, amarelos. Me recordo também de uma flor, de que só
agora descobri o nome, espatódia, que tem tons de alaranjado,
vermelho e uma forma curiosa, me fazia pensar em algum tipo de animal.
Essas experiências de cor e do olhar na infância, ficaram
inteiras na minha mente.
-
Você estudou onde?
Eu estudei na FAAP, em São Paulo. Você poder ter aula
com artistas muito atuantes e bastante importantes como eu tive
naquela época, era uma coisa vital, você sentia que
estava dentro de uma estrutura viva. Discutiam-se os trabalhos...
Lá a gente tinha a sensação, a vivência
mesmo, de estar imerso no mundo da arte... as oficinas eram enormes,
você tinha as melhores condições de trabalhar.
Os debates...os professores pensavam coisas muito diferentes...e
debatiam, um criticava muito o outro e a gente tinha que tomar posição
e analisar as coisas. Eu passava muitas horas na biblioteca, que
era fantástica... me lembro das tardes que eu passava lá
vendo os livros de arte. O que eu considero básico para a
formação de um artista é ver. Ver tudo que
os outros artistas fizeram, ver muito aqueles que você gosta
mais. Então, todos os artistas eu fui descobrindo ali. Outra
coisa, eu percebia claramente nas aulas que os professores queriam
moldar a gente naquilo que eles consideravam a verdade, o que é
complicado, pois muitas vezes eles atropelavam a sensibilidade dos
estudantes. Eu percebia quais eram as tendências “de
moda”, que a minha sensibilidade não se encaixava com
algumas delas e que se eu fosse depender daquilo para ser aceita,
nos salões, em galerias, isso não iria acontecer.
Eu até tentava, mas não conseguia fazer de outro jeito.
Então o período de estudos na FAAP foi muito rico
pelo convívio com os professores-artistas, pelas idas nas
galerias para ver o que eles estavam produzindo, e eles participavam
de bienais com os trabalhos deles, a gente ia, criticava... Estar
em São Paulo também foi muito bom, ir ao MASP, ver
os vídeos dos artistas falando sobre seu trabalho, isso eu
também considero da maior importância, porque quando
eu comecei a estudar...nossa! Eu levava tudo tão a sério,
estudava muito... aí eu comecei a perceber uma diferença
muito grande entre o que os artistas falavam e o que certos teóricos
falavam. Às vezes, certos textos teóricos afastavam
a gente daquela realidade. E quando eu descobri nas exposições,
nos vídeos, os artistas no seu atelier, trabalhando e falando
sobre aquilo, eu vi a vida da arte ali. Com isso eu aprendi muito.
Aprendi qual é o espírito, como você faz, como
você resolve as questões que aparecem. Aquilo pra mim
foi o maior aprendizado. Assim como conviver com artistas, ir lá
no atelier, ver ele trabalhando... eu vi como a coisa é na
prática.
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E quem eram os seus professores?
Evandro Carlos Jardim, que tem um trabalho de gravura em metal,
uma pessoa muito sensível e muito séria...prestava
atenção nas minúcias da técnica. Ele
me ensinou muito pela sua postura de respeito às pessoas,
aos alunos ... e ele vivia rodeado de alunos! Tive aulas também
com Nelson Leirner. As aulas dele eram cheias de alta ansiedade,
porque ele provocava você, te colocava contra a parede, criava
situações- limite e acreditava nisso. E isso foi muito
legal porque ele despertou na gente uma postura de brigar com ele
e de acostumar a receber certas críticas mais contundentes
e parar para pensar e resolver de alguma forma. Ele tirou um pouco
daquela coisa do aluno ficar com uma sensação filial
em relação ao professor mostrando assim, que o professor
é um colega de trabalho, na profissão. Na verdade
ele queria tirar a gente daquele raciocínio muito quadradinho,
muito linear, jogando a gente nos imprevistos. Donato Ferrari também
foi importante. Fui monitora dele na disciplina de plástica
por três semestres e assim aprendi muito de cor. Eu descobri
as variantes de cor e me dediquei muito, a pesquisa da cor começou
ali. Tive professores muito interessantes como a Regina Silveira
de gravura, o Vlavianos de escultura, o Mário Ishikawa, e
o Tomochigue Kusuno de desenho. Ele, por exemplo, não tinha
muito discurso. Um dia eu estava fazendo um desenho de figura humana
com pincel, aí ele chegou e desenhou o fundo primeiro e a
figura apareceu. São coisas que o professor faz e que nos
despertam, abrem a nossa percepção e pronto! Nem precisa
falar mais nada. Naquele minuto, eu já saí com a minha
percepção modificada para a prática. Tive aulas
de Sumi-ê, que foi com Massao Okinaka, um professor japonês
que também falava pouco português... nessas aulas eu
aprendi muito a técnica do pincel. E outras experiências
além da FAAP.
-
Dentro do mundo artístico, sempre existiram alguns modismos...
mas, mesmo assim você descobriu um estilo de pintura seu.
Como você caracterizaria os seus trabalhos?
Eu comecei a perceber que eu tendia mais para formas fechadas, que
eu gostava da forma simples, tinha gosto pela síntese. E
fui descobrindo isso aos poucos... o valor que eu dou para a visualidade,
não como uma coisa vazia, mas fui vendo a importância
da presença visual o trabalho. Eu sinto que o trabalho tem
que ter força visual. Então, certos trabalhos mais
“literários” que eu tentei fazer saíram
horríveis porque eu não sinto dessa forma e para mim
eles não têm valor pela falta dessa força visual.
Eu não sei se ficou claro o que eu quis dizer com força
visual...
-Força
visual seriam as cores contrastantes...
A força visual é a cor quando a questão é
a cor, é a forma quando a questão é a forma.
Para mim o trabalho tem que se resolver para o olhar. A força
dele existe para o olhar. E é isso o que eu considero como
valor. É uma coisa difícil de explicar porque ela
é sensorial. Então quando o trabalho fica muito narrativo
ele vai perdendo essa força E eu não conseguia fazer
isso... e isso era e ainda é um tipo de moda, cada vez mais...Então
eu fiquei afastada de muitos espaços. A força visual
é uma conquista do modernismo, libertar a arte do compromisso
de ilustrar idéias verbais é uma grande conquista.
É o pensamento visual que não segue a lógica
verbal, discursiva, de forma alguma. É uma outra área
de conhecimento, o conhecimento que envolve a sensibilidade visual,
mas ele não se traduz em palavras, ele não traduz
palavras, ele é independente disso. Na verdade eu fui chegando
a essas conclusões porque eu tentava de tudo, eu experimentava
muito. Quando eu experimentava fazer trabalhos com muitos elementos
o resultado não me agradava nunca.Quando eu via trabalhos
dos artistas mais velhos, trabalhos mais sintéticos assim
como os de Arcângelo Ianelli ou de Tomie Othake, percebia
que aquilo me agradava e isso me orientou muito. Eu fui saindo da
questão do mental passando para o sensível. Olhar
essas pinturas e perceber que elas tinham uma repercussão
em mim foi a referência. Eu falei para mim: “Esse é
o caminho que eu quero seguir.”
-Ana,
fala um pouquinho das suas exposições anteriores,
as que você considera as principais.
Eu demorei muito para fazer uma exposição individual,
eu não tinha pressa com relação a isso. Eu
queria estar pronta, chegar em alguma coisa para então fazer
a primeira individual. E sempre procurando...talvez tivesse aquela
ilusão de buscar um estilo único, e é impossível
porque eu tenho muita curiosidade, muitos interesses e eu teria
que me forçar a fazer uma coisa só. o que jamais conseguiria.
Isso é até uma experiência interessante para
passar para os estudantes: não façam isso! É
bobagem! (risos). Eu deveria ter exposto logo no começo.
Fui percebendo que pronta, pronta como eu achava que um dia estaria,
eu jamais estaria. A primeira individual aconteceu quando eu já
estava em Vitória dando aula na Ufes. Eu participei de salões,
coletivas que foram muito interessantes. Logo que eu cheguei. expus
telas grandes no Espaço Universitário, e apreciei
muito, pois eu senti um retorno do público. A cor em uma
dimensão maior parecia chegar à sensibilidade de pessoas
que, mesmo sem uma formação intelectual na área,
vinham manifestar opiniões muito pertinentes e eu achava
aquilo muito prazeroso.
Com relação às individuais, fiz algumas experiências
figurativas....Foi na época em que eu estava fazendo um trabalho
de análise junguiana, observando muito os meus sonhos, escrevi
contos de fadas, fui morar em frente da praia em uma fase pessoal
muito feliz. Mas eu brigo muito com a pintura. Isso já aconteceu
várias vezes em minha trajetória. Eu estava achando
que meus trabalhos estavam muito intelectuais e eu queria uma coisa
simples. Uma simplicidade parecida com a simplicidade com que a
criança, sem ficar pensando se está bom ou não,
ela simplesmente faz sua imagem. Procura fazer o melhor possível.
E eu quis entrar nesse espírito e fui buscar uma coisa talvez
até estereotipada, pintar um barquinho, com o sol...então
peguei o pincel e pus na tinta espessa, não diluída,
e fiz o contorno com tinta grossa. Aí eu comecei a perceber
um potencial que na época estava me interessando muito, que
era o potencial de trabalhar com imagens ...vamos chamar assim,
arquetípicas. Aquilo me fascinou. Aí eu produzi uma
série de pinturas, a árvore, a roseira, o mar, o barco...
e fiquei fascinada de trabalhar dessa forma, com esse aspecto de
profundidades psicológicas, inconsciente coletivo. As pessoas
ficaram imantadas por esse tipo de imagens. Foi muito legal, mas
teve seu tempo, eu fiquei muito satisfeita com aquela pesquisa e
já comecei a me interessar por outras coisas. Foi quando
eu parti para o trabalho “Horizontes Urbanos”. São
vinte telas...Um olhar sobre a cidade porque eu tinha me afastado
de viver na cidade, fui morar em Jacaraípe e depois voltei
e revi a cidade e seus ritmos e tive um outro olhar. Aí,
daquelas figuras eu passei para outras, já não eram
mais contornadas, eu já queria uma coisa de massa, quase
silhueta...e as cores já ficaram mais fortes, mais puras,
porque no trabalho anterior elas estavam mais claras. A partir daí
eu fechei esse conjunto de trabalhos que foi "Horizontes Urbanos"
e senti sede de abstração. Então, foi muito
revigorante, e isso é uma coisa que eu sempre passo para
as pessoas que me pedem orientação, eu acho muito
vitalizante você trabalhar um tempo com figura, um tempo com
abstração, porque elas exigem coisas diferentes. Eu
gosto de passar um tempo sem mexer com aquilo e depois voltar. Você
olha com um outro olhar. Então, a questão da figura
e da abstração não é algo que eu tenha
que escolher. Quase que eu coloquei nessa exposição
algumas figuras, mas eu estou sem tempo físico para atelier
para encarar isso. Eu teria que estar com mais horas para fazer
essas experiências todas e juntar, fazer um conjunto, uma
coisa coerente. Mas, a qualquer momento eu posso aparecer com figuras
no meu trabalho, já estou até com umas idéias,
mas elas não fluíram ainda. Eu não vejo...eu
não tenho que escolher entre um e outro. Conforme o pensamento,
a pesquisa, conforme o sentimento, a idéia, ela vem em forma
de figura. Por exemplo, eu estou com essas telas compridas aí,
e William (Golino, professor de Teoria da Arte da UFES) me perguntou
se eu ia pintar, aí eu disse "Eu não estou ainda
com nenhuma idéia comprida". Nem vertical, nem horizontal,
sabe? Eu olho para elas e elas não me dizem nada. E olha
que eu já pintei muitas telas alongadas. Não há
muito controle sobre isso, é uma síntese de uma série
de interesses, de sentimentos, de percepções, de idéias.
E o que eu gosto na arte é essa complexidade. Não
dá para tornar menos complexa, então parece que tem
uma hora que a gente faz uma síntese de tudo isso que está
sendo vivido e aí requer um certo tipo de formato, uma certa
gama de cores, requer que seja abstrato ou figura. E não
é só seu lado racional que vai escolher, isso torna
o trabalho pobre e chato para você e para quem for olhar.
Na verdade é a síntese que você vai fazer que
determina se vai ter cor ou não, se vai ser aguado ou espesso.
Você só vai sentindo se está indo de encontro
ao alvo ou não. Quando eu estava fazendo esse quadro ali,
por exemplo, o verde e rosa, eu tive que viajar. E ele teve tanto
impacto sobre mim, que eu me lembrava dele lá e eu me sentia
feliz. Era como se eu ficasse olhando ele de lá. Porque eu
não tive muito tempo de parar e ficar olhando para ele...O
olhar é uma parte importante do meu trabalho no atelier.
E eu me lembrava que ele estava aqui e me sentia feliz, eu me senti
feliz quando ele aconteceu, e não foi tão previsto.
Dos trabalhos para essa exposição, aquele amarelo
que está lá no alto, que são dois amarelos
e a faixa branca, foi o primeiro. Parece que nele eu consegui aquilo
que eu falei da síntese, então tudo que eu estava
querendo trabalhar em forma de pintura eu consegui marcar como referência.
Na hora em que eu pintei, eu falei: "É isso que eu quero
agora!". E se alguém me perguntasse : "E isso é
o quê?" Aí eu teria que parar para traduzir em
palavras. Nesse trabalho eu me permiti chegar numa simplicidade,
comparado com outros, maior. E isso me agradou imensamente. Todos
esses trabalhos tem três cores, se eu coloco uma quarta cor,
me incomoda, fica excessivo, porque a questão do momento
é síntese, é simplicidade.
Para essa exposição eu pensei em escrever algumas
palavras, pensando no que poderia ajudar as pessoas a entrar no
mesmo clima que eu, então se eu pudesse dizer algumas palavras...
simplicidade, silêncio e cor.
A minha prática de atelier, as horas de olhar são
básicas, eu não pinto sem isso. Não faça
esquema vou lá e pinto, não existe isso. Esse tempo
de olhar é de sentir de como está se dando essa química.
E de tentar prever se eu entrar com um vermelho ali como é
que vai ser. Aí entra a minha experiência que de tanto
colocar as cores uma do lado das outras, você vai formando
seu banco de dados sensível. Mesmo assim você não
consegue prever totalmente, a memória de cor é muito
efêmera.
-
Como que é seu processo de criação, de elaboração
das suas telas?
Bom, tem uma fase inicial que você não sabe o que você
vai fazer. Em termos de processo de criação existem
muitos livros que falam sobre isso, aprendi muito com eles a não
brigar com o processo, pois tem suas várias fases e para
cada artista é de um jeito. Para mim, eu fico um tempo pensando,
eu preciso fazer meus esboços, pois aquilo me ajuda a imaginar.
Eu gosto muito de fazer esses esboços, mas, é apenas
para eu ancorar uma sensação, para não perder
a idéia. Essa é uma primeira fase. Depois encomendo
minha tela no formato e na espessura que eu quero. Com a tela já
pronta para trabalhar, eu começo de uma forma muito simples,
colocando cores, eu não desenho antes na tela. Quando eu
trabalho com a forma reta, do que às vezes eu sinto falta,
aí eu uso máscara de fita adesiva, essas coisas. Nessa
exposição eu não usei porque eu estava querendo
algo mais macio, mais solto. Eu tentei fazer algumas em que eu coloria
a tela inteira primeiro, para entrar com as formas depois, eu não
gostei muito dessa forma de trabalhar. Eu gostei mais quando eu
já fui com uma idéia clara do que eu queria. Eu já
vou querendo alguma coisa: vai ser um retângulo dessa cor,
o fundo vai ser daquela e a outra forma daquela outra cor...Depois
as coisas podem mudar, ou não. Seria um acorde de cores que
tem aquele clima, aquela atmosfera de que eu falei, enquanto eu
não sinto isso eu não sinto energia de pintar, eu
tenho preguiça de pegar na tela para passar tinta nela. Quando
vem um acorde de cores que eu considero que vai ficar envolvente,
bonito, suave, gostoso, forte ou alguma outra sensação,
aí eu não vejo a hora de pegar a tela e colocar as
tintas, porque eu quero ver aquilo. O processo eu deixo muito aberto
para descobrir outras coisas, às vezes eu vou com um acorde
e vejo uma possibilidade de mudar e mudo mesmo. Mas, o principal
do meu processo é isso: enquanto não vêm as
cores certas, eu não tenho a menor energia para pintar. Às
vezes começa com uma cor, fico com uma obsessão de
uma cor, um rosa, por exemplo, aí depois fico pensando: "O
que vai vir com esse rosa?" Aí eu quero contrastes,
ou não, quero cores bem parecidas, uma vibração
suave... São sensações. Eu li uma vez Matisse
falando: " Meu quadro começa com uma sensação."
Pelo menos eu estou bem acompanhada e eu acho que os coloristas
(considero coloristas os pintores acima de tudo apaixonados pela
cor) são todos assim. A sensação pode ser de
contraste forte, de calor, de pulsação... E existem
cores certas para essas sensações. As vezes eu fico
tentando achar essas cores certas. Uma vez encontrada, a felicidade
é completa. Eu vou para o quadro naquela busca de ver aquela
sensação concretizada. É tão empolgante
para mim, mas eu não fico pensando "Vou levar ao espectador
essa sensação". É uma coisa de compartilhar.
Eu fico imaginando se a pessoa vai sentir daquele jeito... Que legal
que vai ser. É como se eu falasse: "Olha que cores bonitas
ou tranqüilas que eu encontrei aqui, olha que cores quentes
ou como elas ficam bem juntas." É um convite mesmo,
a uma sensação que eu considero rica. Um convite à
contemplação, a entrar em silêncio mental para
o olho ficar cada vez mais atento, impregnado das cores... E é
isso, o que me apaixona na arte: a complexidade.
E agora falando de sensação, a pessoa pode pensar
numa coisa bem epidérmica. Mas na verdade essa sensação
está ligada ao fato que meus quadros tem também uma
proposta meditativa, porque isso faz parte do meu mundo, eu gosto
de fazer meditação, considero o silêncio muito
importante. Estar no mundo com atenção leva a uma
outra percepção da realidade, olhar uma cor e tornar-se
“igual” a ela, ver a vida a partir dela...é descobrir
mais uma faceta da existência. E quando você, como pintor,
leva alguém a esse determinado “posto de observação”
esse alguém sofre transformações no seu ser
e agir no mundo de uma maneira não previsível, porque
você não traz um discurso pronto, uma visão
de mundo a ser seguida, copiada, você traz uma oportunidade
de enriquecer o olhar, a vida.
-
Além disso existem alguns artistas que influenciaram seu
trabalho?
Com relação às influências de outros
artistas sobre o meu trabalho eu vejo duas fases, primeiro o tempo
de estudante em que eu buscava aprender com os artistas que estudava
na história da arte. Foi uma fase de grandes paixões,
eu passava períodos inteiros totalmente envolvida com o trabalho
de um determinado artista até me envolver com outro e assim
por diante. Leonardo da Vinci, Rembrandt, Cézanne, Matisse,
Kandinsky são apenas alguns nomes. Depois disso eu entrei
na busca do meu caminho e aprendi muito experimentando o processo
nomeado por Kandinsky de improvisação. Considero os
estudos a esse respeito como a base do meu trabalho de abstração.
Esse processo levou-me diretamente ao expressionismo abstrato do
qual era uma das origens. Uma exposição de Karel Apel
no Masp em que pude ver o vídeo mostrando seu ateliê
e método de trabalho foi uma experiência marcante que
me levou a pensar na liberdade necessária ao bom trabalho
de arte. Acompanhar de perto a montagem da 16ª bienal de São
Paulo com curadoria de Walter Zanine, então nosso professor
de história da arte, fazendo parte do grupo de apoio do artista
francês Hervée Fischer que apresentou intervenções
na cidade foi uma experiência muito rica. No caminho de eleição
da pintura como o meu meio de criação principal comecei
a perceber que os trabalhos que mais atraíam meu olhar eram
os que podemos nomear como trabalhos de campos de cor. Foi um período
em que descobri Ianelli e Tomie Ohtake. Depois veio a descoberta
de Rothko. A primeira vez que vi uma reprodução de
uma de suas pinturas de campos de cor (porque ele tem outros tipos
de pintura também) senti forte impacto, como se estivesse
vendo o meu sonho de pintura tornado mais concreto, mais palpável.
Era como uma bússola apontando o caminho. O trabalho abstrato
de Volpi também me marcou muito por sua força. Uma
única reprodução já é o bastante
para influenciar profundamente quando existe a ressonância
da afinidade. Hoje tenho grande admiração e aprendo
com o trabalho de Paulo Pasta e Eduardo Sued que são artistas
contemporâneos que estão no mesmo caminho.
Com relação à questão da influência
em si eu considero que a gente descobre muito sobre si mesmo quando
se abre para o trabalho de outros artistas e naturalmente dá
continuidade a uma construção histórica, o
que é da maior importância. A pintura é um campo
de conhecimento criado por inúmeras gerações
de pintores, teóricos e apreciadores e entrar nesse campo
aprendendo com os que vieram antes e buscando dar nossa contribuição
é o que dá o sentido maior do trabalho.
-
Você falou do Rothko e eu me lembrei de uma coisa: o gesto
dele era suave, você tem isso no momento em que está
pintando ou o seu gesto é mais dinâmico?
O que eu aprendi muito no Sumi-e... Porque a gente tinha umas idéias
equivocadas na época da FAAP. Que o artista precisava estar
num estado de semi-loucura, mas com o Sumi-e eu aprendi uma certa
disciplina sensível. Você tinha que prender a respiração
e acompanhar o traço do pincel, porque senão dava
errado e não tinha como consertar. Aquilo me despertou para
a riqueza do universo, de você estar muito sereno, atento
e centrado. É o estado em que eu entro quando estou pintando,
por isso que eu falo que é parecido com a meditação,
porque é um estado de centramento, de atenção.
Eu só vou para o momento de aplicar a tinta sobre a tela,
quando eu estou muito serena, atenta, calma. Então, é
um gesto de consciência. Eu estou muito consciente de cada
coisa que está acontecendo, de cada pincelada que está
compondo aquele todo. Não tem aquela coisa do "frenesi".
Eu compreendi isso com artistas que têm essa vivência
com a meditação, eles conseguem aquela atenção
intensa sem precisar usar artifícios, substâncias.
Por que o ocidental para eliminar o ruído cotidiano, acha
que precisa utilizar esses artifícios, ou então, se
motivar a ficar tomado de fortes emoções para conseguir
calar um pouco a mente. Então, ele vai para o quadro feito
um louco pintar, mas eu prefiro ir um pouco por outro caminho com
que eu tenho mais afinidade que é justamente o caminho da
concentração. Eu fico olhando infinitamente os quadros
que estão prontos, sou capaz de ficar olhando meses. Os quadros
que eu faço são ricos para mim. Eu procuro nas sutis
tensões do quadro criar justamente essa riqueza. Quando eu
sinto vontade de parar de olhar e pegar no pincel é por que
eu já entrei num estado de concentração profundo
para esse trabalho que eu vou fazer. Se você não entra
nesse estado o trabalho fica superficial, você não
conquista nada com ele.
Você
já criou alguma coisa a partir de um texto, música
ou poesia?
Eu não faço isso. As sínteses se dão. Eu amo ler poesias, eu
escrevo poesias, eu ouço músicas com intensidade e com certeza elas
estão presentes naquilo que eu faço. Mas se eu me propuser a fazer a
partir daquilo, eu já fico com uma má vontade tremenda, porque eu
sinto que é superficial. Teve uma pintura que eu fiz, numa exposição
anterior, no Palácio do Café, uma marinha. Ela ficou tão azul...
Quando eu terminei, eu olhei e me lembrei de um poema que li
infinitas vezes, de um poeta americano, Wallace Stevens. Depois que
eu fiz o quadro percebi que eu tinha pintado o poema. O poema entrou
tanto dentro de mim, eu introjetei tanto, eu amei tanto aquele poema
que, no momento em que eu estava pintando, ele estava ali presente,
e eu dei o título ao quadro: "Marinha para Wallace Stevens". Todas
essas coisas compõem a minha consciência. Procuro ler outros
assuntos também, assuntos que me interessam. Eu sinto que a partir
daí, eu vou fazendo sínteses de percepções que eu tenho. Aí, eu
produzo uma série de pinturas depois que elaborei compreensões das
coisas que vejo, assim eu tenho condições de elaborar coisas novas.
Esse é meu processo de criação.
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